Jeremias não morreu. Como dizia minha avó, ele deitou, mas não fez a cama. Casou-se cedo. Separou-se tão rapido como se casou. Envolveu-se de novo com mulher, ainda mais rapidamente. Jeremias não queria morrer, pois morrer, para ele, significava acreditar no que diziam os padres: morrer é não ter consciência. Ele queria mais: ele desejava não estar entre os vivos e ter consciência disso, de que se livrou do fardo de estar vivo.
Jeremias cursou Arquitetura. Desenhou prédios, um museu e planejou o interior misterioso dos antros do Forum. Mas não se contentou com tão pouco em alma, em meio a tanto concreto. Lembrava-se de sua mãe ridicularizando seu pai, ao contar que ele, ao cortejá-la, falava que iria alcançar as estrelas por ela. Quando criança, ele queria ser astronauta, mas ele temia morrer dormindo ao atravessar de volta a atmosfera. Ele queria ter a consciência de tudo. Quando Jeremias estava já com sua quarta mulher, ao saber que ela traía-o com o entregador de jornais (enquanto ele a traía com o projeto da sede do Jornal), ele desistiu de estar fixo na vida.
Jeremias esteve hospedado, para o espanto de todos, na garagem do fórum que ele mesmo idealizou. Foi removido para um albergue. Quiseram mantê-lo lá, mas ele fugiu. Ele vivia fugindo. Ele fugia da vida e da morte. Quando ele passava na frente da igreja matriz de sua cidade, ele virava as costas para as beatas. Quando alguém lhe falava sobre o diabo, ele começava a atirar pedras a esmo. Ele tinha tornado-se um andarilho, rejeitado, não pelo mundo, mas por si mesmo. Ele próprio se deserdara. A vida, de madrasta maledicente, passou a ser-lhe operadora de cobrança.
Jeremias vivia pelas escadarias, louco de pedra, a reverberar contra as imundícies que não havia visto ainda nas pessoas. Ele dizia que era justamente por isso que não ousava passar defronte a vidros ou espelhos, com medo de constatar ter-se tornado pior que aquelas. Suas únicas companheiras inseparáveis eram as pombas, com os olhos cinzentos ou negros, como a lhes confidenciar segredos, auferidos do alto das igrejas.
Certa vez, ele já andava em trapos esfarrapados, quando uma beata, ao sair da igreja, interpelou-o:
– Meu filho, diga-me, o que aconteceu para você descer a esse nível?? O que seus pais devem estar achando disso no Céu??
Ao que ele respondeu, entre dentes careados:
– Já levantou da tumba e esqueceu de trocar a mortalha, velha??
Jeremias era motivo de chacota para uns adolescentes desocupados e de pena para outros. Mas aqueles não percebiam que invejavam o dinheiro que Jeremias deteve e a irregularidade das suas noites, tudo mesmo que desejavam. As pessoas que sentiam pena dele simplesmente temiam o seu mesmo destino, ou pior, o inferno que acreditavam ter para si ou para os seus, reservado há muitas eternidades.
A mais louca sina teve o arquiteto, tão querido na cidade, depois do mais cobiçado sucesso. Mas bastaria um tropeço qualquer para que ele fosse noticiado ainda com mais entusiasmo. Pois, a língua doce agrada ao paladar e salta aos olhos, mas é a acidez que atiça o apetite das massas. No meio da revolta, o movimento rotatório de sua alma conturbada de dores o arremessou no redemoinho da vida sem rumo. Em tal vida, Jeremias descobriu a liberdade das múltiplas visões que ele poderia ter, assistindo tudo de diferentes ângulos, dormindo debaixo de várias pontes. A ausência de posses o fez perceber que ele se degeneraria mais rápido, mas também que tudo o que lhe dera prazer ilusório também o faria desiludir mais tarde. Desiludiu-se cedo demais!! Por isso, ele estava ali, dentro de uma tumba no mundo, com gente lamentando seu deambular asqueroso e seus mulambos catinguentos.
Mas é o que fazem com seus mortos, não é mesmo?? – perguntou-se. A diferença é que mortos já não tem olhos para verem suas mulheres lhes sorvendo a fortuna com esbórnias, nem seus filhos crescendo sem direção. Mortos não sentem o vento no rosto, quando todos os esqueceram há muito, e quando até os deveres e os impostos não mais lhes importunam. Espantalhos de si mesmos é o que são esses mortos-vivos, fugindo do espelho como se tivessem realmente alguma esperança que os anos não tivessem passado.
Lá está Jeremias, olhando para a poça d’água. Chuva de verão açoita seu lombo. Olha para a poça como Narciso para o Lago. Se apaixonou por sua Liberdade, não como para uma rota de colisão entre astros, mas como a única forma de sair do olho do furacão, e vislumbrar a vida fora dos sofrimentos “normais” e pesados. O sofrimento agora era leve. Deixou as roupas caras como um espírito que descansa do corpo que não mais anima.
No dia em que o último suspiro de amor se foi com a última lágrima derramada, ele secou de sua fonte de angústias. Ele soltou a corda que o mantinha atado à sua morte, vivida em meio a ilusões. Ele disse para si que estava morto para essa vida. Mas qual a vida que não morre a cada adormecer?? Qual vida não morre em cada ar que se expira??
Qual não é a vida tal um recomeço em cada minuto em que o sol se apronta para nascer?? A chuva cessou. Jeremias parou de pensar. Ele estava cansado, e adormeceu na poça d’água. Jeremias achava que estava, enfim, morrendo de verdade. Mas era somente mais um final de tarde.
Jeremias não morreu, embora, ainda que queira, ele não tenha consciência disso.
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