Sem dúvidas, a partir de 1994 o Plano Real veio nos facilitar (atenuar) um pouco a vida. Mas, se os preços não aumentavam tanto quanto antes, os salários também não acompanhavam o crescimento dos sonhos das pessoas. E ainda havia algumas pessoas que sonhavam em ganhar sobre a dificuldade de outras. A fórmula de alguns era simples, agora que a moeda se estabilizara: ganhar muito com coisas de pouca qualidade, gastando pouco, se possível, tirando até do seu prato, economizando, assim, obsessivamente.
Em 1996, no segundo ano do Ensino Médio, tínhamos um professor de História que trabalhava mais ou menos encima dessa cartilha. Vou chamá-lo, aqui, de Trajano, por razões óbvias, aproveitando do nome do imperador romano muito citado pelo tal professor.
No primeiro dia de aula, ele já chegou à sala com passadas largas, como se estivesse em uma caserna romana. Só nos faltava ouvir um Ave, César da boca dele. Ele resmungou apenas um Boa noite, antes de nos introduzir aquilo que seria a tônica das aulas dele por um bom tempo: o livro de História escrito por ele.
O professor Trajano era um sujeito atipico, na perfeita acepção do adjetivo. Em sua cabeça, o Hemisfério Norte era quase todo desértico como uma tundra gelada. Apenas a partir do Equador craniano é que começavam, timidamente, a surgirem os primeiros sinais de uma savana capilar, com escassos e ralos pelos a lhes descerem pelas orelhas, terminando por afluírem em dois rios laterais para uma barba de três dedos de altura, à melhor moda de Sócrates. Dizia comigo que ele era o próprio Socrates, com óculos de hastes demodés e dentes corroídos pelo tabagismo.
Ele era (ou é ainda) um homem de rígidos hábitos e práticas. Em matéria de História, não admitia, de um aluno, tratamento inferior ao de um gênio, pelo qual ele ficava deveras envaidecido. Religião: católica. Partido político: aquele ao qual o pároco estivesse afiliado. Estado civil: casado com dona Estela… e filho da Virgem Maria. Se distinguia dos outros docentes por sua camisa cáqui e pela inconfundível e única calça jeans. Isso mesmo: ele só usava uma calça jeans, religiosamente, todos os dias. Ele alegava lavá-la diariamente, mas, por vezes, a coloração encardida da peça o contradizia insistentemente. A calça quase poderia sair correndo dele se, num deslize, ele afrouxasse o cinto. Quase podíamos ouví-la pedindo socorro.
Na sua apresentação à classe, no primeiro dia de aula, aproveitou para apresentar também seu novíssimo livro de História, História sem Mistérios. Estipulou uma cota de R$ 10,00 por aluno, sem direito a cópias – todos os alunos teriam que, obrigatoriamente, comprar o tal livro. Se ele pegasse alguém com alguma cópia do livro, alertava ele, ameaçador, a rasgaria diante de todos. Definitivamente, aquilo não era uma democracia!!
Direitos autorais à parte, ele não recordava, ou fingia não lembrar, que dava aulas a um colégio público. Lamentasse ele ou não, estivesse ele frustrado com sua malograda carreira literária ou não, nem todos os alunos ali, assim como nem todos os pais, podiam pagar pelo livro que, sinceramente, era mal escrito, mal editado, mal pesquisado, onde a única ilustração era a foto de seu autor, nada artística. Naquela época, eu fazia muitas coisas com dez reais. Dez reais, em 1996, era o almoço e o jantar de muita gente.
No fim do ano, sabendo da ojeriza que poesias, principalmente em língua portuguesa, causavam no professor Trajano, na época do Amigo Secreto, embora o nome dele não houvesse sido incluído no sorteio, toda a classe combinou de comprar uma calça jeans novinha, em Brusque, e entregar esse presente ao mesmo tempo que alguém estivesse declamando uma poesia de Augusto dos Anjos – Versos Íntimos – sugerida por mim na época, que eu achava a cara dele.
A reação (interior) de nosso querido professor todos podem deduzir: a pior possível. A reação (exterior), para inglês ver, também todos podem supor: previsível. Teve de engolir nosso presente de grego, pra não fazer desfeita diante da diretora, que estava visivelmente constrangida, conhecendo-o a anos. Entre tremores de lábios, cabisbaixo, conseguimos, com muito esforço acústico, ouvir um Obrigado, classe!
Essa, depois de catorze anos, é para o senhor, professor Trajano:
Versos Íntimos (Augusto dos Anjos)
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Referência: http://www.releituras.com/aanjos_versos.asp
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