Estou aqui, a essa hora, para escrever um desabafo. Quem, afinal, não escreve ou nunca escreveu um desabafo? Passa da meia noite. Não consegui dormir e, depois de um diálogo difícil meu com meu ego, percebi que precisava exteriorizar alguns fantasmas.
Muitas pessoas falam que a luz para nossa escuridão existencial deve ser encontrada unicamente em nós mesmos. Mas, o que elas esquecem é que somos cegos e imperfeitos. Quando, finalmente encontramos alguma luz, esta tende a nos cegar. Por isso, por temermos a luz, costumamos permanecer na escuridão, ainda que tais trevas nos mantenham em dificuldades.
Costumamos, também, dizer que para tudo há um jeito, exceto para a morte. Eu diria, porém, que para tudo há, no máximo, um remendo possível. Um vaso quebrado, se colados seus cacos, nunca mais será o mesmo de antes da queda. Um amor ferido, mesmo que restabelecido em seu lugar principal, não mais será o amor da inocência do primeiro encontro. Um amor não vivido, quando enfim encontrado pelas esquinas da vida, não terá mais o mesmo impulso, ainda que a vontade de voltar à virgindade (perfeição original) seja vigorosa.
Eis minha vida, que continua, mas cujos remendos, se poucos, se tornaram difíceis. Deixei minha mãe, segurando seu pranto de escorpiana, na porta de casa, e fui-me, contando apenas dezesseis anos de idade, só com uma trouxa de roupas e alguns objetos pessoais, para uma aventura inconsequente, a qual me trouxe um filho. Foi a apoteose do meu orgulho adolescente, ávido por liberdade (ou por perder-se). Não escutei a voz da Razão na boca de minha mãe, e perdi longos 5 anos, passando fome, sendo devorado pela diabetes, desempregado, sem estudar e perdendo de vista todos os meus sonhos.
Para esses anos, não há remendos possíveis. Isso mesmo, nem mesmo remendos. Para esse tempo perdido, não há abatimento ou indulto; a Vida cobrará o preço de minha soberba pelo resto de meus dias. E agora, o que me resta? Cuidar dos restos de mim? Sim, a Vida me foi ainda benevolente ao me conceder, a duras penas, um trabalho estável para que eu não passe fome e uma pessoa que me ature, talvez também por ter-se perdido em seu orgulho adolescente.
Com sorte, serei comido, bem devagarinho, pelo diabetes, que já mostra sua ferocidade. Com sorte, não entrarei em depressão ao me dar com uma exposição de fotografias ou numa notícia de descoberta arqueológica. Se possível, não sentirei inveja quando meu irmão mostrar seu carro novo, a cada reveillon, e nem mesmo quando um primo distante me reconhecer e dizer que não estudou nada, mas assim mesmo abriu mais uma filial de alguma merda por aí. Bem, também não cursei faculdade, mas continuo fodido. Motivo: covardia e mediocridade. Quem busca saltar muito alto, com vara de bambu, no máximo consegue alcançar o muro.
Bem, aos quarenta anos já estarei morto sexualmente. Por isso, decidi não querer mais ter filho, já que, realmente, não sei que tipo de pai ele teria; impotente, deprimido e fodido. Meus órgãos internos já estarão deteriorados, ou comprometidos. Mesmo já tendo parado de fumar, continuarei com os mesmos problemas vasculares que já tenho aos trinta anos. Portanto, não sei se chegarei a jogar futebol com meu filho, já que bastaria um calo para que reaparecesse o perigo de amputação de um dedo, vários dedos ou até mesmo do pé ou perna inteiros.
Decidi não escrever mais crônicas ou poesias. São histórias contadas por mim que estão muito distantes de meus olhos, falam de coisas das quais só consigo teorizar e de sonhos que estão muito além da minha coragem ou possibilidade de vivê-los. Acho que, muitas vezes, escrevo para fugir do meu ego agressivo, já que ele é o flagelo que a Vida entranhou no meu pescoço para me fazer beber mais ainda dos meus erros, me incutir a culpa que vem do inferno e me desvirtuar ainda mais. Não escrevo mais contos, porque acho que aqueles personagens é que teriam habilidades suficientes para escrever uma tragicomédia a meu respeito. Mas não o fariam, pois a tragédia já não é um gênero muito popular entre os leitores, e o romantismo de Shakespeare, no mundo de hoje, já caiu em desuso por achar-se deveras piegas.
O Ego é tão covarde como nós mesmos; o Ego bate num bêbado cego, que caiu por suas próprias pernas podres, e nós batemos em nosso peito, achando que existe um Deus bonachão, que figura em filmes de super-heróis e salva até os piores canalhas. Eu poderia ter sido tudo, se ousasse me controlar e subir um degrau por vez. Mas, fui atraído pela beleza do precipício, e me lancei abaixo, louco de paixão por meu próprio orgulho. Minha vida se perdeu e nunca mais foi achada. Mas, – estranho – eu tenho consciência de que minha vida está perdida, deslocada no tempo, fora de sua órbita, tal como na história do mendigo Jeremias, alheio ao mundo, que pensa ter morrido e acorda numa poça de lama após mais um fim de tarde chuvosa.
Sinto que nossa vida se desvanece, como areia por entre os dedos. Mas, nós a sentimos ainda, desvanecida. Essa propriedade humana de sentir, ter consciência, incomoda e dói muito, às vezes. Vemos, então, a Vida nos esfregando nas fuças, o tempo todo, que não somos nada mais que poeira sobre ossos, que não sabemos nem mesmo que horas são, já que o fuso horário é relativo. Tudo é absolutamente relativo, e esse é um paradoxo que, acho, nunca desvendarei.
Enfim, quero dizer que estou cansado. Acho que a velhice na alma está chegando, e isso já não me assusta. Só me persegue a sombra na alma, me dizendo que estou preso na própria jaula que forjei para minha libertação, que quis avançar no Tempo, e regredi ainda mais.
Peço uma luz, um caminho. Espero não ser tarde para reconhecer que estou precisando de auxílio divino. No entanto, sei que durante a Noite Negra da Alma estamos sempre sozinhos, em crise, nos deparando com nossas cicatrizes e abrindo-as ainda mais para ver porque ainda cheiram mal. É um momento de sentença que a misericórdia divina raramente interrompe. Se sobrevivermos, ótimo; a misericórdia nos busca e leva para outra paragem. Se não passarmos na prova, nos levarão os Habitantes do Umbral para um momento mais drástico, onde tomamos ainda mais Consciência do quanto paramos no Tempo. Existe castigo mais terrível que o encontro consigo mesmo?
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