Esses dois termos me vieram à mente ontem à noite, antes de dormir. Decidi refletir sobre eles. Com relação ao primeiro termo, não encontrei nada na internet que fosse à sua raiz morfológica para lhe dar o significado. Sobre o segundo, há alguns que se debruçaram a respeito. No entanto, resolvi expor abaixo minhas próprias reflexões acerca deles.
.
Por Ebrael Shaddai.
.
Hipocrisia
Essa é uma palavra originária do grego, composta pela junção de ‘ypo e krisis. ‘Ypo significa “sob, que está embaixo”, enquanto krisis denota “crise, momento de contradição”. É da krisis, por exemplo, que pode advir a metanoia (mudança, conversão). De krisis, nasce o termo crítica, que supõe uma advertência que nos exorta à reflexão e à mudança.
Assim, a hipocrisia é uma linha de pensamento e conduta em que o sujeito propõe, aos outros, mudanças de comportamento às quais ele mesmo, na essência, não se submete. Na maioria das vezes, exorta aparentemente à prática de alguma virtude. Sim, porque as virtudes não são regras, mas exceções. A pregação acerca das virtudes, via de regra, pressupõe mudanças contra os vícios, que são, sim, a regra de uma civilização que insiste em relegar ao porão a sua vocação à santidade.
Também, cheguei à conclusão de que tal palavra expressa-se como indicativo de algo que está subjacente e protegido. Subjacente no que toca às intenções da ação ou discurso, e protegido das “crises” (oportunidades de mudança) por apego ao que é, paradoxalmente, criticado pelo hipócrita. Intenções, por vezes, inconfessáveis, tão contraditórias tendo em vista a necessidade de mudanças e o atraso no crescimento, que precisam ser… reveladas sob um véu triplo, formado de três momentos dialéticos — a saber: o reconhecimento do erro sem abandoná-lo, a pregação da virtude sem adotá-la e o relativismo da virtude ideal em função da probabilidade de reincidência no erro.
A diferença entre aquele que prega a virtude por querer mudar algo errado, primeiramente nele mesmo, e o hipócrita é o caráter cínico do discurso deste último. Enquanto que para o primeiro a virtude é um objetivo em si, para o último é algo pronto, como se o fato de alguém rico usar trapos constituísse prova cabal de virtude. Logo, o sofrimento que, para o primeiro, é instrumento para transformação interior, é louvado pelo segundo como troféu, arma de superioridade onde o que é feio não é contrabalançado pelas boas ações e humildade, mas putrificado definitivamente por uma vaidade crassa. Vaidade é sempre vaidade.
Hoje em dia, como se não bastasse a vaidade dos bens, temos o orgulho do que é feio e caquético. As pessoas não têm mais vergonha do que é feio. Elas querem ser feias! Enquanto há pobres que trabalham e se empenham em melhorar, honestamente, de vida, há outros que, não bastasse refestelarem-se no que a pobreza tem de malsã, acham-se no “direito” de serem malandras e pusilânimes! Para esses, é uma dádiva viver numa sociedade que lhes dá a alfafa mofada de cada dia para que tenham motivos para maldizer a sociedade, vandalizar o bem público e ainda se fazerem de vítimas, não obstante sua conduta indolente e corrompida.
É nesse cadafalso que os ideais morais de virtude caem, hoje em dia. O hipócrita: 1) assume um erro e a vontade de corrigí-lo, sem jamais se esforçar para tal; 2) prega a virtude contrária ao seu próprio erro para forjar uma imagem positiva, para, então; 3) passar a ideia de que a virtude (caminho da retidão) é algo humanamente opressivo e que a probabilidade do erro não vem na medida de sua frouxidão, mas do fato de ser humano como todos e, por isso, se identificar com todos que lhe ouvem. Assim, transforma um discurso em prol da virtude em uma Constituinte que torne aceitável o que antes ele próprio mostrava ser repugnante.
O hipócrita não se desvela pela contradição entre seus atos passados e seu discurso presente, nem vice-versa. O hipócrita se mostra como tal ao relutar em adequar o discurso presente sob análise do padrão de seus atos passados, que deveria ser modificado. E não o faz: nem muda o padrão de atos passados, que admite ser condenável, nem seu discurso presente, ao mantê-lo em contradição com sua conduta atual. A krisis, aí, é inútil, senão mesmo inexistente! Permaneceu sendo uma ‘ypokrisis, um estado em que a planta exibe flores, mas cujo caule continua imaturo, fora do ciclo natural do tempo, imune à mudança sadia, como uma serpente que nunca troca de pele. Nunca antes a metáfora dos sepulcros caiados me pareceu falar tão claramente dos hipócritas!
“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundície. Assim, também vós, exteriormente, pareceis justos aos homens, mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade.” (Mt 23:27-28)
O hipócrita é iníquo (desequilibrado, desajustado) e sempre o será enquanto permaneça imerso na ‘ypókrisis, enquanto não mergulhe em si e traga a si mesmo à tona para que a prova da krísis possa testá-lo. Na contradição da prova — e toda prova nos põe em contradição —, temos a chance de endireitar o que está torto, aplainar o que ainda possui arestas. Mas, o hipócrita é covarde e imaturo, pois se recusa a enfrentar a prova e reluta em abandonar seus desvios. Ainda mais: propala seus desvios, convenientemente, com uma aura de desejável bem, já que, para eles, tudo é relativo, lançando seus semelhantes na corrente do erro e do auto-engano.
.
O verbo Revelar
Esse verbo é usado justamente para significar o contrário do que realmente significa. Basta que saibamos o que ela quer dizer na origem. Vem do latim revelare (re-velare), ou seja, “tornar a cobrir com o véu”. Se quisermos um verbo que expresse a ideia de “trazer algo oculto à Luz”, devemos usar o verbo desvelar.
O livro bíblico do Apocalipse, cujo nome, em grego, significa Revelação, é um exemplo típico do uso correto e original, não corrompido, desta palavra. Ao contrário do que os ocidentais, pródigos em curiosidade fútil, tendem a imaginar, ela (a Revelação) não traz nenhum segredo à Luz da compreensão da mente vulgar, mas uma realidade fora do Tempo para dentro do nosso “tempo”, não com explicações “mastigadas” e explícitas, mas com um véu de símbolos acessíveis somente à Intuição. Essa é a palavra-chave: Véu! Revelar é recobrir com um véu de cor diferente.
Diversamente do uso simbólico da “revelação”, a mídia, quando diz revelar algo, quase sempre se utiliza da mistificação para fazer uma estória parecer revelação. Não diz a Verdade, mas sua versão da Verdade, cujo fim não é o Bem, a Beleza e a Justiça. Quando o objetivo do véu que cobre a Verdade não é proteger os olhos, mas filtrar o que convém, os meios iníquos ficam evidentes somente para aqueles que sabem distinguir uma revelação de um infantil ato de mistificação (em muitos casos, falsificação mesmo).
Nenhum Poder no Mundo pode expor a Verdade como ela realmente é, pois ela não necessita de ninguém para que venha à Luz, mas é imprescindível a nós, que buscamos as pistas da Verdade, instar aqueles que se assentam sobre o túmulo que para ela construíram a moverem seus traseiros, confessando sua hipocrisia.
O sinal de Jonas, o qual Jesus deixara àqueles que d’Ele exigiam “revelações” espetaculares, é perfeito também para a nossa realidade atual. Rejeitamos ver as coisas de forma simples e direta. Então, vêm a baleia do sensacionalismo e nos engole, devolvendo-nos após presenciarmos aqueles três momentos paradoxais do hipócrita, citados logo acima, depois dos quais ficamos ainda mais confusos.
Ora, se pratico a virtude, mas os criminosos também podem alcançá-la, que diferença teria eu em relação a eles? Se não consigo enxergar o óbvio por puro orgulho e vaidade, como estarei imune ao mimetismo relativista da mídia, que traveste o crime como um “direito” e a virtude como algo em que até as moscas podem nos superar?
Desconfie daqueles que têm uma “revelação de Deus” para você, ou daqueles que prometem que “revelarão toda a Verdade sobre algum fato”. Ainda que os fatos se teçam num pano de renda, as tintas que usam para transmitir as manchas nunca são as originais, pois quem sabe de uma injustiça, tem o dever de dizê-lo nos telhados assim que puder abrir a boca, e não quando o tempo lhe é propício e vantajoso.
4 comentários