É certo que a Palavra (Verbo) de Deus é imutável. Mas, quê fizeram dos ensinamentos de seu Filho os alegados Apóstolos deste, ensinamentos aqueles que, ao tempo de sua Paixão, ainda não poderiam ser totalmente expostos? Foram eles fiéis a tudo o que o Mestre ordenou ou sucumbiram aos próprios enganos?
Neste ensaio, tratarei de um dos temas que mais terror infundiu em mentes eruditas da Cristandade, bem como nas massas ignorantes da Europa medieval: a duração das penas post mortem. Seriam as penas realmente “eternas” no sentido em que foram explanadas?
Tenho minhas dúvidas. E não sou o único cuja Razão tem repulsa, não apenas moral, mas natural à ideia de que um homem tenha que sofrer, por um único ato que seja, uma eternidade de penas. Que Deus, Eterno e Todo-Poderoso, imbua de imutabilidade cada uma de suas Leis, é compreensível. Mas, como um ser finito, tal qual o homem, cujas causas também estão inseridas no plano finito do Espaço-Tempo, poderia sofrer efeitos eternos?
Desde muito cedo, a Igreja se esforçou em demonstrar que o Mal não existe de per si (por si mesmo), sendo caracterizado como “desarmonia entre os elementos” naturais e humanos [1]. Esses postulados foram muito úteis, por exemplo, no combate ao Maniqueísmo. Ora, se o Mal não existe desde sempre, como a adesão a ele poderia ser causa de penas eternas? Se a Alma peca com a Liberdade que lhe é peculiar, ainda assim o faz de forma limitada, pois que limitada é a Liberdade da Alma. Somente a Essência de um Ser Onisciente (tal qual a de Deus) poderia ser inteiramente livre.
A Eternidade, tal qual a entendemos hoje, implica, necessariamente, na noção do Absoluto. Qualquer coisa eterna é absoluta: não admite opções ou mudanças de estado. Diferente de nós, os primeiros cristãos estavam imersos num universo cultural que via os “deuses” como seres antropomórficos, imbuídos de características morais humanas (ciúme, megalomania, fúria, etc.). Para suplantar essa visão, Cristo veio nos mostrar quão ridícula era.
O que era eterno, para os antigos, não poderia ser medido em termos de forma ou duração. Jamais poderia, pois o Universo para eles se resumia ao planeta Terra e aos astros anexados à abóbada celeste. A noção de infinitude, como a concebemos hoje, estava ausente do pensamento antigo. Coisa semelhante acontecia aos antigos iorubás que, não tendo termo adequado para exprimir uma quantidade imensurável, indicavam-na pelo numeral 301 (trezentos e um).
Não obstante, as expressões, nos Livros Sagrados e da Patrística, que denotavam quantidades indefinidas (de forma ou duração) eram designadas por æternitas, æternus, ad æternum, sempiterne (“eternidade, eterno, para sempre, sem fim”). Na língua grega, a palavra mais usada para esse fim era aionos (lê-se éonos, “era, época, tempo, século”). O equivalente na língua hebraica era ad-olahm (“para sempre”). Mesmo quando se referiam a Deus, os antigos cristãos ou judeus não tinham ainda a noção de infinitude (como nós a entendemos) em seu ideário.
O interessante era que, para os hebreus, o olahm também era usado para designar o Mundo, o Universo, da mesma forma que os sæcula o eram para os latinos, em que significavam “tempos sem fim ou o Mundo material, no passado e futuro”. O olahm hebraico e os sæcula romanos não eram infinitos. Quando se diz ad-olahm, não se quer dizer, realmente, “para sempre” (como nós entendemos), mas por um tempo humanamente inconcebível ou enquanto durasse a existência de um ser ou objeto.
Tanto o substantivo quanto o adjetivo gregos aion / aionios (lê-se: éon / eônios), usados para significar “para sempre, eterno, eternamente”, se ligam, na língua grega, indefectivelmente à natureza e condição do objeto ou ser ao qual se aplicam. Se se refere a Deus, sendo Deus eterno, logo aionios significa eterno (no sentido que conhecemos). Se se refere ao homem, significa enquanto este for vivo. Se se refere a uma alma, deduz-se que se refira à condição atual daquela alma.
Assim, na carta de Paulo a Filêmon (v. 15), quando Paulo recomenda a Onésimo que receba a Filêmon “para sempre”, instando-o a ficar com ele, obviamente não é para levá-lo consigo para a eternidade. Igualmente, quando Judas, em sua carta (v. 7) fala do “fogo eterno” que consumiu Sodoma e Gomorra, não quis dizer que ele ainda estivesse ardendo. Não! No século I, só havia ruínas no sítio conhecido como Sodoma, sem brasas ardentes no meio do deserto. Logo, o “fogo” das penas dos ímpios não se apagará enquanto houver ímpios para serem “queimados” nele. Ou melhor, purificados.
Mesmo que o tal conceito de fogo infernal seja sublimado para um estado de separação eterna de Deus, voltamos a uma das questões deste artigo: se o ser humano é finito, que causa finita lograda por ele poderia lhe dar como pagamento um efeito eterno? Isso equivaleria à perda absoluta da Liberdade, donde se traduz por destruição definitiva da alma. Ainda assim, isso não é uma pena de duração eterna, pois que dura uma fração ínfima de tempo, após o qual não haveria ali alma a sofrer coisa alguma.
Outra consequência lógica é que uma punição eterna evoca um memorial eterno do pecado cometido. Disso, depreende-se que jamais qualquer Misericórdia Divina seria capaz de apagar os pecados dos condenados, ainda que estivessem escondidos nos quintais do Universo, enquanto as almas “bem-aventuradas” gozassem seu festim monótono, entre harpas e anjos eunucos. Enquanto Deus, que é eterno, puder lembrar dos pecados cometidos pelos condenados, daqui a dez anos ou bilhões deles, deverá haver aquele aterro com lixão de almas que não receberam o prêmio de serem aniquiladas de uma só vez, ao invés de sofrerem a trolagem incessante dos diabos de pele vermelha.
Em que pese haver sentenças definitivas incondicionais a favor de uma tal doutrina de penas eternas nos textos sagrados, há outros tantos em que as penas eternas trazem consigo condicionantes, como na famosa parábola da Reconciliação:
Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão.
Em verdade, te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. [2]
Poderia-se alegar várias coisas aqui: que o ensinamento moral contido ali é para situações cotidianas; que se referia ao tempo em que alguém ainda estivesse vivo, na Terra; que a condicionante (“enquanto não pagares”) é inerte, ou seja, que não tem efeito ou não cabe a uma situação que envolva condenação eterna.
Enfim, os católicos poderiam alegar, também, que essa parábola auxilia na fundamentação doutrinal sobre o Purgatório. Ora, as almas do Purgatório, segundo o Catecismo da Igreja, já estão “salvas” [3]. Seu juízo se daria no último dia, com a Segunda Vinda de Cristo, depois de passarem pela purificação do Purgatório. Ao contrário, na parábola se vê que a sentença do juiz é anterior ao cumprimento da pena, após a qual, presume-se, o sentenciado sairia livre da prisão. Enquanto, no ensino sobre o Purgatório, a data de término da purificação esteja fixada como sendo a da segunda vinda de Jesus (embora não se saiba que dia será esse), na parábola de Jesus essa “data” está indefinida. Segundo Jesus, é o sentenciado, pagando sua dívida “até o último ceitil”, que mostrará de quanto é sua pressa em sair da prisão, e não o Juiz.
O mesmo caso das penas condicionais vemos a seguir:
E, indignado, o seu senhor o entregou aos atormentadores, até que pagasse tudo o que devia.
Assim vos fará, também, meu Pai celestial, se do coração não perdoardes, cada um a seu irmão, as suas ofensas. (Mateus 18, 34.35)
Outros trechos contradizem a tese da eternidade das penas, tais como:
“(…) porque misericordioso sou, diz o Senhor, e não conservarei para sempre a minha ira.” (Jeremias 3,12)
“Doutra maneira, que farão os que se batizam pelos mortos, se absolutamente os mortos não ressuscitam?” (1 Coríntios 15,29).
Acima, Paulo de Tarso faz um questionamento interessante: de que serviria o Batismo aos mortos se esses já estivessem salvos ou condenados (após a morte)?
Obviamente, as noções de Céu e Inferno (como destinos, respectivamente, das almas boas e más) eram muito anteriores ao Cristianismo. Enquanto a religião israelita oficial não contemplava o Sheol como mais do que a mansão das almas dos mortos, em contraste com o chamado “seio de Abraão”, as religiões maniqueístas persas e a greco-romana nutriram a crença nos equivalentes aos Elíseos e ao Hades, Paraíso e Inferno. Houve, assim, uma confusão, ao incorporarem ao sistema cristão, crente num Deus de Amor, os terrores inconscientes de adoradores de deuses antropomórficos e sedentos de sangue.
Ao meu ver, muitos problemas filosóficos cercam tais crenças. Para citar apenas um: como conceber um local definido (circunscrito no Espaço-Tempo) do qual não se poderia sair jamais? Eternidade onde não há eternidade? Sim, um local definido não é eterno. A eternidade não admite mudanças. Se o Inferno fosse eterno (ainda que apenas sem fim), ele não admitiria uma alma sequer! O que é eterno, não muda. Se o Inferno muda (não sendo eterno), admitindo a cada vão momento contêineres e mais contêineres de almas rebeldes, nada nele, nem o que acontece nele nem os que nele reinam, é eterno. Por consequência, também as penas sofridas nele tampouco são eternas.
***
No filme Gladiador, o personagem principal, protagonizado por Russell Crowe, logo antes do início da batalha contra os Marcomanos, diz aos seus cavaleiros: “O que fazemos aqui, ecoa na eternidade” [4]. Eis uma frase poderosa e profunda!
Cada vão momento de nossa existência tem fortes ligações com os nexos causais do Destino, influenciando-o decisivamente e imprimindo em nossa alma uma marca profunda, fruto de uma Vontade mais ou menos consciente. Esse é o pressuposto da Liberdade: a Escolha! Tudo o que o homem semear, isso também ceifará [5]. Se não nesse século, mas no século vindouro [6]. Mas, nossa Liberdade, acaso, é ilimitada? Não seria ilimitada, apenas, a Vontade do Criador? Ora, se nossas escolhas se dão em regime de Liberdade limitada, como poderíamos arcar, ainda mais se de forma justa, com seus efeitos por toda a Eternidade?
Diz-se que a pena deve ser proporcional à importância daquele que é ofendido. Quão maior não é a distância entre minhas insignificante pessoa e a de Deus, tal qual a de uma criança tola e a de um Juiz do STF! Acaso, a Lei dos homens imputaria à criança uma prisão perpétua por ofender, inadvertidamente, a um juiz do Supremo Tribunal Federal? Não, a pena é proporcional à capacidade de dano do ofensor, ao seu nível de consciência do ato e a muitos outros fatores. Assim, se aplicadas sob condições, as penas não seriam absolutas. Logo, não seriam eternas.
Esses entraves de entendimento se dão, além de outros fatores, pela doutrina católica de que a alma só é livre se unida ao corpo físico, pois que somente enquanto vivo (encarnado) é que o homem é um ser vivente. Para a Igreja, não há divisão possível entre corpo e alma, perfazendo estes dois apenas um “corpo”, o ser humano indivisível [7]. Portanto, a alma do defunto é uma sombra que deverá ir ou direto para o Inferno, para o Purgatório ou para o Céu, não contando mais com a Liberdade e a Razão. Assim, pois, é que não poderia mais se arrepender, nem fazer um bem ou um mal.
Quando Jesus nos diz que o sentenciado não sairá da prisão “enquanto não pagar o último centavo” de sua dívida, estipula uma condição, uma premissa. A menos que Jesus tenha dito isso em tom de zombaria para com os sentenciados “eternamente”, ele alega que, sim, o condenado pode vir a pagar seus débitos e sair da prisão. Se assim não o fosse, por que Jesus teria ido pregar o Evangelho aos “mortos” se esses não pudessem mudar seus destinos [8]?
Não há Justiça “injusta”. Nem Jesus é sádico, nem Deus o é.
“A cada um seja dado segundo suas obras”. [9]
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NOTAS:
[1] AGOSTINHO, Santo. Confissões, livro VI, XIII, 1. Arquivo (online, PDF), p. 64. Site: Canção Nova. Disponível em < http://goo.gl/eJn9JW >. Acesso em 15 de julho de 2015.
[2] Cf. Mateus 5, 25.26. || Ceitil: centavo, tostão, moeda de menor valor.
[3] Catecismo da Igreja Católica, §1030-31. Santa Sé. Disponível em < http://goo.gl/gZwGrO >. Acesso em 15 de julho de 2015.
[4] GLADIADOR (título original: Gladiator). Dir. Ridley Scott. Elenco: Russell Crowe, Joaquin Phoenix et alii. 154 min. EUA: DreamWorks & Universal Studios, 2000.
[5] Gálatas 6,7.
[6] Século: sinônimo de era, tempo, ciclo ou mundo de existência. Nas sentenças de Jesus, este termo denota “mundo” onde as pessoas existem ou passarão a existir um dia (vide Lucas 20,35). || Jesus diz, indiretamente, que há faltas pelas quais respondemos nesse “século” ou, senão, no “século vindouro”. Faz isso ao se referir ao pecado contra o Espírito Santo, que não seria perdoado “nem nesse século, nem no próximo”. Vide: Mateus 12,32.
[7] DOMINUS. Catecismo responde dúvidas sobre a unidade do corpo e da alma. Entrada (online, blog). Site: Dominus Vobiscum. Publicada por: Cadu. 26 de julho de 2011. Disponível em < http://wp.me/p13kL5-UD >. Acesso em 15 de julho de 2015.
[8] 1 Pedro 3,19; 4,6.
[9] Salmos 62,12 e 28,4; Jeremias 25,14; Mateus 16,27; Romanos 2,6, além de outros.
Excelente texto Júlio. É de invejável (invejável no bom sentido) lucidez e discernimento. Meus parabéns. Guardei-o em pdf nos meus arquivos, pela importância que lhe atribuo.
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Grato pela visita! 😀
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Realmente, um excelente texto Júlio, tambem salvei-o em pdf para consultas. Parabéns!
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Espero que lhes sirva, ao menos, para reflexão. 😉 Obrigadão, Jef!
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