Prazer difícil


Há dias em que o que você precisa é apenas relaxar um pouco. Melhor é relaxar em boa companhia. Há semanas que eu e minha esposa combinávamos ter um momento a dois, longe de interferências externas, sem adolescentes em casa, no silêncio, ouvindo tão-somente o ruído de nossa própria voz.

Se eu fosse supersticioso, diria que facilidades temos apenas para fazer o que é errado: fumar, beber, nos atrasarmos para o trabalho por mais dez minutos de sono, etc. Diria, também, que há forças sobrenaturais especializadas em encher nosso saco exatamente nos momentos principais de nossa vida, nas vésperas de nossos prazeres mais frugais. Tomei banho, fiquei cheiroso como sempre. Fiz uma refeição leve, e fiquei pronto para um tempo só nosso, meu e de Rose. Nos entreolhamos, coloquei a mão direita no bolso, num compasso de ansiedade e espera, mais que demorada.

De repente, toca o telefone: a senhora minha mãe acaba de cumprir sua missão de me ligar pela segunda vez no mesmo dia para saber se eu havia me alimentado. Meu rosto sua, mas consigo falar civilizadamente com minha mãe sofredora. Afinal, honrar pai e mãe não significa apenas tirar boas notas na escola. Respiro, e recomeço a tentar chegar perto de Rose para… limpar o chão, depois de derramar o café sobre o colo dela. O café estava quente, e sinto ela se esforçar interiormente para não me xingar. Ela prefere disfarçar e ir trocar sua camisola, feliz como toda esposa espartana.

Espero-a impaciente, e improviso uma música suave ao fundo do quarto. Ela chega e me pergunta se eu estou com sono, e se eu aguentaria ficar mais tanto tempo acordado. Eu procuro tranquilizá-la, dizendo que há muito tempo que havíamos combinado essa noite. Quando me lanço pra abraçá-la, um grilo pousa sobre minha cabeça e me arranca a última gota de paciência e sanidade que me restavam. A pantufa é mole, mas suficiente para fazê-lo sentir toda a poeira que ainda sobrara no soalho. Poderia tê-lo comido, mas, como já havia dito, tinha me alimentado bastante.

Depois de ter tirado o telefone da tomada, trancado as portas, deixado apenas a lâmpada sobre nós acesa, fechado as cortinas, limpado o chão, verificado se havia alguém mais para chegar da vizinhança, tomamos posição e recomeçamos.

Quando, coladinhos como estávamos, nos concentramos suficientemente, eis que falta energia elétrica!! Ao que gritei:

– Que merda! Será que é tão difícil assim lermos um livro depois do trabalho??

***

 

MORAL DA HISTÓRIA:

“Quando você pensa que está fazendo algo de forma certa, sempre te dirão que temos mais o que fazer; quando estamos fazendo coisas erradas, não faltarão pessoas a te dizer que estás a fazer a coisa certa”.

A última bolacha do pacote


Hoje vou lhes contar um causo que resgatei ontem do meu velho caderno Tilibra , de anotações, amarelado pela falta de uso (e vergonha na cara em comprar um novo).

Com 15 anos de idade, comecei a aventura que todo jovem besta e rebeldezinho inicia ao descobrir que tem pelos nas axilas: as baladas de sábado à noite. Na verdade, eram de sextas-feiras, sábados e domingos, em todas as semanas. Foi assim durante dois anos seguidos. Comecei a beber, fumar cigarro e aprender todo tipo de gíria ridícula que se possa imaginar. Nem gosto de me lembrar das bermudas da Drop-Dead, de skatista-funkeiro-sei-lá-o-que, que usava, dentro das quais eu parecia ter mais dois quilos de algo sob as pernas. Não, eu não saía de casa sem ir ao banheiro, disso eu tenho certeza!!

Na noite de Natal de 1995, onde estava eu?? Naquele clube brega que tocava Dance Music e que agrupava os desocupados adolescentes da minha cidade. E eu me incluía nesse grupo. O nome do clube já era um atestado de mal-gosto, e um distintivo para o povo desocupado saber que havia chegado no lugar “certo”: Guarani Disco Light. Hoje esse nome infeliz está ainda mais triste. Tornou-se May-Bear Dance Hall. Soa-me como praga ou remédio para quimioterapia.

Naquela mesma noite de Natal, acho que tive o castigo merecido por deixar minha mãe sem minha companhia. Ela estava na companhia do meu outro irmão. E eu?? Sassaricando pelas pistas de dança!! Mais ou menos pelas 22 horas, começou a chover torrencialmente. A chuva não cessava, mas eu não queria nem saber. Nem ficar com alguém eu fazia questão naquela noite, pois que já haviam “passado o rodo” em todas… Não parava a chuva e as ruas no entorno começaram a ficar alagadas.

Chegou uma hora que as águas entraram no clube, que foi evacuado. Evacuado mesmo, pois as água invadiram primeiramente os banheiros. Daí então um amigo (amigo da onça) me chamou para levar duas gurias em casa, na chuva e dentro da enchente mesmo. Não tinha para onde ir mesmo aquela hora, pois a ponte que separava aquele bairro de outro em que eu morava, pelo que falaram, havia partido ao meio.

Segurando vela...
Segurando vela...

Lá foi eu, esperando o triste destino de segurar vela, ainda por cima, na chuva. Parece que o cara tinha agarrado as duas gurias, pelos boatos. Se não tinha agarrado, iria agarrar. E eu iria guardar a porta do motel. O clube fechou mesmo, então eu fui!! No meio do caminho, ele já estava de mãos com uma delas. A outra, até que bonitinha, começou a puxar papo, para não ficar chupando dedo. Mas o meu brother, ao invés de ajudar na lida, começou a me boicotar, dizendo que minha namorada (estava “solteiro” na época) estava me esperando em casa, que não devia deixar ela dormindo sozinha, com minha mãe a fazer interrogatórios. Só sei que quando me dei por conta, o cara já estava de bunda na água. Lá foi uma voadeira para ele ficar ligado. A coisa mais triste que existe é o cara ser egoísta, invejoso, porque via que a ficante dele estava de olho em mim também. Foi tanto assim que a guria dele nem deu a mão pra ajudar ele a se levantar. Estava ele ali, abandonado às águas da enchente, jogado à solidão de um gorila que broxou. Ele foi embora, por outro caminho. Levei as duas até suas casas e “fiquei” com a que eu estava em plena chuva. Roupas molhadas, coladas no corpo!! Hummmmmmm…

No dia seguinte, o cara veio me dizer sem pestanejar:

– Tu se acha a última bolacha do pacote, não é??

Ao que eu respondi, com a frase que me identificou por anos:

– Eu “não me acho“, eu “me tenho certeza“!!

Professor Trajano e os Versos Íntimos


Sem dúvidas, a partir de 1994 o Plano Real veio nos facilitar (atenuar) um pouco a vida. Mas, se os preços não aumentavam tanto quanto antes, os salários também não acompanhavam o crescimento dos sonhos das pessoas. E ainda havia algumas pessoas que sonhavam em ganhar sobre a dificuldade de outras. A fórmula de alguns era simples, agora que a moeda se estabilizara: ganhar muito com coisas de pouca qualidade, gastando pouco, se possível, tirando até do seu prato, economizando, assim, obsessivamente.

Em 1996, no segundo ano do Ensino Médio, tínhamos um professor de História que trabalhava mais ou menos encima dessa cartilha. Vou chamá-lo, aqui, de Trajano, por razões óbvias, aproveitando do nome do imperador romano muito citado pelo tal professor.

No primeiro dia de aula, ele já chegou à sala com passadas largas, como se estivesse em uma caserna romana. Só nos faltava ouvir um Ave, César da boca dele. Ele resmungou apenas um Boa noite, antes de nos introduzir aquilo que seria a tônica das aulas dele por um bom tempo: o livro de História escrito por ele.

O professor Trajano era um sujeito atipico, na perfeita acepção do adjetivo. Em sua cabeça, o Hemisfério Norte era quase todo desértico como uma tundra gelada. Apenas a partir do Equador craniano é que começavam, timidamente, a surgirem os primeiros sinais de uma savana capilar, com escassos e ralos pelos a lhes descerem pelas orelhas, terminando por afluírem em dois rios laterais para uma barba de três dedos de altura, à melhor moda de Sócrates. Dizia comigo que ele era o próprio Socrates, com óculos de hastes demodés e dentes corroídos pelo tabagismo.

Ele era (ou é ainda) um homem de rígidos hábitos e práticas. Em matéria de História, não admitia, de um aluno, tratamento inferior ao de um gênio, pelo qual ele ficava deveras envaidecido. Religião: católica. Partido político: aquele ao qual o pároco estivesse afiliado. Estado civil: casado com dona Estela… e filho da Virgem Maria. Se distinguia dos outros docentes por sua camisa cáqui e pela inconfundível e única calça jeans. Isso mesmo: ele só usava uma calça jeans, religiosamente, todos os dias. Ele alegava lavá-la diariamente, mas, por vezes, a coloração encardida da peça o contradizia insistentemente. A calça quase poderia sair correndo dele se, num deslize, ele afrouxasse o cinto. Quase podíamos ouví-la pedindo socorro.

Na sua apresentação à classe, no primeiro dia de aula, aproveitou para apresentar também seu novíssimo livro de História, História sem Mistérios. Estipulou uma cota de R$ 10,00 por aluno, sem direito a cópias – todos os alunos teriam que, obrigatoriamente, comprar o tal livro. Se ele pegasse alguém com alguma cópia do livro, alertava ele, ameaçador, a rasgaria diante de todos. Definitivamente, aquilo não era uma democracia!!

Direitos autorais à parte, ele não recordava, ou fingia não lembrar, que dava aulas a um colégio público. Lamentasse ele ou não, estivesse ele frustrado com sua malograda carreira literária ou não, nem todos os alunos ali, assim como nem todos os pais, podiam pagar pelo livro que, sinceramente, era mal escrito, mal editado, mal pesquisado, onde a única ilustração era a foto de seu autor, nada artística. Naquela época, eu fazia muitas coisas com dez reais. Dez reais, em 1996, era o almoço e o jantar de muita gente.

No fim do ano, sabendo da ojeriza que poesias, principalmente em língua portuguesa, causavam no professor Trajano, na época do Amigo Secreto, embora o nome dele não houvesse sido incluído no sorteio, toda a classe combinou de comprar uma calça jeans novinha, em Brusque, e entregar esse presente ao mesmo tempo que alguém estivesse declamando uma poesia de Augusto dos Anjos – Versos Íntimos – sugerida por mim na época, que eu achava a cara dele.

A reação (interior) de nosso querido professor todos podem deduzir: a pior possível. A reação (exterior), para inglês ver, também todos podem supor: previsível. Teve de engolir nosso presente de grego, pra não fazer desfeita diante da diretora, que estava visivelmente constrangida, conhecendo-o a anos. Entre tremores de lábios, cabisbaixo, conseguimos, com muito esforço acústico, ouvir um Obrigado, classe!

Essa, depois de catorze anos, é para o senhor, professor Trajano:

Versos Íntimos (Augusto dos Anjos)

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Referência: http://www.releituras.com/aanjos_versos.asp

Dona Ludmila e o Sapo


Morar em morros não significa (ou, pelo menos, não significava até tempos atrás) viver sempre cercado de temores de fuzis ou traficantes cruéis. Eu tive essa experiência na pele, literalmente, ao sentir o calor humano e a solidariedade das pessoas nessas comunidades. Na pele sim, pele bronzeada pelo sol escaldante a escalar as escadarias que lembram muito as do Bonfim.

No morro encontramos gente de todos os tipos, de todas as nuances: gente de classe média ou carente, universitários ou que assinam com o polegar no carimbo, católicos, espíritas e crentes. Esbarramos em pessoas subindo com sacolas de supermercado, televisões de plasma ou sacos de cimento nas costas, trabalhando para os que constroem suas casas e ganhando uns trocados. Na minha época de trevas, em que não havia “acordado para a vida”, como dizia uma pomba-gira que muito me ajudou, eu carreguei cimento morro acima, sacos de areia e brita graúda. Trevas, mas também tempos em que aprendi a olhar mais fundo nos olhos das pessoas e participar de seus sofrimentos, que então também eram meus.

Estamos nos idos de 1997, num morro da periferia de Florianópolis. Dentre aquelas figuras pitorescas, encontrei, como já previra antes de ir morar lá, uma senhora tão polêmica quanto popular. Era dona Ludmila. Ela era o tipo de pessoa que você ou a ama ou a odeia. Em última análise, ou a admira ou dela sente pena, ou pelo fervor de crente “zelosa” ou por seu caráter irascível.

Ela, cedo pela manhã, já era vista descendo pelas escadas rezando alto e solitária, aos olhos já acostumados dos moradores. Era o “despertador” coletivo”: se o galo, em dia de chuva, ficasse “gripado”, lá estaria ela, com seu vozeirão imprudente, já que sofria de uma asma quase irritante. Descendente de poloneses, forte e temível, ia pelo caminho, em acessos esporádicos de fúria “santa”, chutando as imagens de santos nas grutas, derrubando e quebrando oferendas às entidades dos “macumbeiros”. Mesmo sendo avessa à televisão, adotara o “mármore do inferno” como bordão, e achava que era um dizer comum dos “crentes”.

Mesmo despejando sua ira contra tudo que considerasse idolatria, não acreditava que macumba “pegasse” nela. “A macumba é a própria mentira do diabo, querendo assustar os crentes do Senhor!! Como o diabo não pode contra a gente da Igreja, ele inventa essas baboseiras”. Quando perguntada porque perdia tempo em chutar a mentira, ela respondia que a macumba era mentira, mas que seu sapato era de verdade. Sempre em vestidos longos, no estilo mais antigo das anáguas pretas, ela não suava nunca. Era incrível ver como ela vestia aquele blazer azul-claro no verão, sem nem precisar de um lenço sequer para lhe enxugar o rosto.

Certo dia, jogaram um sapo morto com a boca costurada, dentro de seu quintal. O mundo parecia que ia desabar. Configurou-se o próprio mini-apocalipse daquele morro. Ouviu-se um rugido pavoroso naquela manhã de sábado:

– Quem foi o istepô, o lazarento que colocou esse feitiço na minha terrinha?? O inferno te espera, lazarento!! Querem me derrubar e trazer doença pra minhas crias!!

Nessas horas, acho que ela esquecia completamente que era crente, de tantos impropérios que ela arremetia aos quatro ventos. Eu dizia comigo que ela agora iria acusar… quem mesmo??

– Agora que sei!! Só pode ter sido aquela sirigaita da Babilônia, aquela “zinha” da Marlene!! Tá querendo roubar meu filho da mãe dele!! Quer destruir a família dos outros, a perdida!! Mas aquela rameira há de acordar amanhã com o bucho inchado, e o amante dela com o “bigo” bichado!! Ah, se vai!! E ainda mata um pobre bichinho pra matar para o “demo”…

Marlene era a namoradinha de 17 anos de Isaías, o caçula, que ainda morava com dona Ludmila. Depois de passar aquele dia inteiro investigando, entrando e invadindo a casa de todo mundo para maldizer a Marlene e a família da “perdida”, sua asma começou a arrefecer, depois que lembrara que não portava a “bombinha”. Voltou para casa, subindo o morro com dificuldades, não admitindo a ajuda de profanos. Quando chegou, finalmente, à sua casa, escutou ruídos no quintal. Foi ver. Encontrou dois meninos abrindo a boca do sapo, que ela deixou a secar ao sol, encima do tanque de roupas. Ela quase teve uma síncope.

– Menino, não toca nesse bicho!! Esse bicho já é do “demo”!!

O menino respondeu:

– Dona Mila, olha o que escrito no papel enrolado no saquinho!! O saquinho, na língua do sapo!!

Era o nome de Marlene!! Surpreendentemente, dona Ludmila senta-se na soleira da porta da cozinha e respira fundo. Nessa hora, não lembrava-se mais da crise de asma. Depois de alguns minutos sem falar palavra, responde aos meninos enfim:

– Bem, pelo menos o sapinho morreu por uma boa causa!!

Dona Ludmila não tinha jeito. Inimigo seu era inimigo de Deus, nem que o diabo lhe servisse de ajudante. Afinal, se não pode vencer o Inimigo, alie-se a ele!!

%d blogueiros gostam disto: